Memórias


A LINHA DO COMBOIO NA AVENIDA 24


As invasões do mar fazem parte da história – e dos tormentos – das gentes de Espinho até aos anos 80 do século XX, altura que teve lugar uma profunda intervenção de defesa costeira que perdura até hoje, com relevância para os dois enormes esporões construídos nas zonas da Piscina Solário Atlântico (mais a Norte) e do Bairro Piscatório (mais a Sul). Mas o problema do mar já se colocava de forma premente na primeira década do século XX, com as sucessivas invasões oceânicas a ameaçar a existência da Estação dos Caminhos de Ferro de Espinho e a própria Linha do Norte. A ameaça era de tal forma séria, que, em 1908, começou a ser ponderada a deslocação da via férrea para Nascente, o que passaria pela construção de uma variante à Linha do Norte entre os quilómetros 314,600 e 319,540, passando a linha do comboio, em Espinho, a assentar carris na então designada Rua Conselheiro Albano de Melo, ou seja, a atual Avenida 24. 
À luz dessa variante, a construção da nova estação ferroviária foi projetada para os terrenos do Parque João de Deus (cerca de 30 metros, para sul, da porta de entrada do atual edifício da Biblioteca Municipal, na Av. 24). Este processo, que durou 62 anos, teve avanços e recuos, e terminou em 1971 de modo inesperado com o abandono definitivo do projeto da construção da nova variante à Linha do Norte em Espinho.
Na foto, vê-se o pormenor dos carris da nova variante, na Av. 24 com a rua 19.




A MÚSICA NO CAFÉ CENTRAL


O Café Central em Espinho viveu o seu momento de glória no limiar do século XX, mais precisamente em 1898, com a atuação do violoncelista catalão de renome mundial Pablo Casals. Segundo o maestro Fausto Neves, era "tal a sua fama que aqui acorria todo o meio artístico e amadorismo do norte de Portugal e até de Lisboa". Foi nesta época que Casals travou conhecimento com várias personalidades musicais portuguesas com destaque para o pianista Artur Napoleão, o violinista Moreira de Sá e a violoncelista portuense Guilhermina Suggia, com quem manteve uma relação amorosa, tendo vivido juntos em Paris entre 1906 e 1913.
Pau Carles Salvador Casals i Defilló, que ficaria célebre pelo nome de Pablo Casals, nasceu em 1876 em Tarragona e foi um exímio violoncelista, compositor e chefe de orquestra. A revolução que operou na técnica do violoncelo e as suas excecionais interpretações de Bach deram-lhe, à época, o reconhecimento público de maior violoncelista do mundo.




A NOVA INDUMENTÁRIA DE BANHOS NO ESTADO NOVO

A instituição das férias pagas e a consagração das oito horas de trabalho deram outra escala aos momentos de lazer, permitindo a uma grande parte da população urbana experienciar práticas sociais até aí reservadas às elites. Os tempos livres vão assim ganhar estatuto e as praias afirmam-se como uma componente essencial na implementação do hábito anual do veraneio. Espinho beneficia dessa circunstância e vê aumentar o seu prestigio no panorama nacional e internacional com a inauguração da Piscina Solário Atlântico em 1943, de dimensão olímpica, abastecida com água do mar e considerada um dos melhores equipamentos da Europa para a prática de banhos.
O ritual do banho – que estava reservado às manhãs nos inícios da praia terapêutica – estendeu-se progressivamente às tardes, juntando-se-lhe o sol, o bronzeado e os desportos de praia, como foi o caso do voleibol com os disputados torneios da Praia Azul e os campeonatos da Costa Verde. 
A publicidade dava conselhos aos banhistas sobre a forma mais correta e segura de poderem usufruir do sol e do mar. O vestuário balnear sofreu transformações profundas com a chegada dos refugiados da 2.ª Grande Guerra, que trazem para as praias portuguesas outros hábitos e costumes e, sobretudo, fatos de banho mais curtos e ousados – fatos que expunham os corpos de forma "ameaçadora” para a moral e costumes do Estado Novo e do regime fascista em vigor, avesso a ousadias e a liberdades. E foi para combater estes excessos – que colocavam em causa a campanha pela "moralização das praias” iniciada em 1936 pela Mocidade Portuguesa Feminina e pela Obra das Mães pela Educação Nacional – que o ministro do Interior Mário Pais de Sousa preparou e fez publicar o Decreto-Lei 31:247, de 5 de maio de 1941, que começa por referir "que nos termos da Constituição, pertence ao Estado zelar pela moralidade pública e tomar todas as providências no sentido de evitar a corrupção dos costumes.” Nesse sentido, o documento fixava as condições mínimas a que deviam obedecer a confeção dos fatos de banho; determinava a competência fiscalizadora das autoridades – e em especial dos Cabos de Mar; e estabelecia sansões a aplicar aos incumpridores.




A AUTONOMIA DE ESPINHO PELA PENA DE ANDRÉ DE LIMA

A questão da autonomia administrativa de Espinho em 1899 está deliciosamente retratada em duas publicações de sinal contrário: uma a favor das pretensões espinhenses; a outra em defesa dos interesses da sede do concelho, a então designada Vila da Feira.
O livro que pugna pelos interesses espinhenses, escrito num registo muito peculiar, chama-se a "Autonomia de Espinho e Os Protestos da Vila da Feira". Trata-se de uma brochura de cerca de 150 páginas datada de 1900 (um ano após a criação do concelho), sem identificação do autor, que esmiúça e ridiculariza - com requintado humor e especial mordacidade - os protestos da autoridade da Feira.
Foi preciso esperar quase três décadas para se conhecer, finalmente, o desbragado autor deste livro que marca, de forma indelével, o processo conturbado da autonomização de Espinho da Vila da Feira. Foi num artigo do jornal "Gazeta de Espinho", publicado a 25 de setembro de 1927 que o padre André de Lima (que nasceu no Lugar da Praia de Espinho em 1866 e foi sacerdote de S. Félix da Marinha, Guetim, Oliveira do Douro e Esmoriz, onde faleceu a 7 de janeiro de 1933) confessa a paternidade da obra: "Num dado momento, perdendo de todo a paciência, pegámos nervosamente na pena e escrevemos algumas folhas de papel, em que formulámos o nosso protesto contra aqueles diabretes e em que procuramos alvejar os seus autores e inspiradores (...)."




OS PRIMEIROS CASINOS EM ESPINHO


Na segunda metade do século XIX e nas primeiras três décadas do século XX, os casinos em Espinho pululavam numa zona compreendida entre a Av. Serpa Pinto (Av. 8) e a rua Bandeira Coelho (19), a qual foi caracterizada de forma perspicaz por Ramalho Ortigão em "As Farpas”: "Ao longo do Chiado as batotas são quase tão numerosas como as filiais das lojas dos Lóios e dos Clérigos. (...) A falta de tempo, que tantas vezes obsta ao cumprimento dos nossos mais sacrossantos deveres, me impediu de visitar todas as casas de tavolagem que exornam esta tão alegre e afamada praia”. Não existia melhor local para estabelecer contactos com a magistratura da capital, principalmente quando se frequentava uma sala de jogo de "alta esfera”, como era o caso do casino Chinês. Bastava, nas palavras de Ramalho, "uma placa de dois tostões e uma simples palavra para a gente se dirigir a quem quiser: - Piso no valete com o senhor conselheiro! Não é preciso mais nada. Depois de ter a gente pisado por três vezes no valete com um conselheiro e com dois tostões, pode perder seis tostões; mas, além de ter tido um gosto na vida, fica ainda com um conselheiro no bolso. É galinha!”.
O mesmo já não se podia dizer das roletas de "baixa esfera” ou "pataqueiras” como a taberna do "Chico do Pipo” ou a do "Carvalheira”, onde uma mulher "pedia em altos gritos que lhe pusessem o marido cá fora, porque estava jogando o pão que amanhã os filhos deveriam comer”. O Café da Praia, Barbosa dos Pirolitos, Barbosa Cauteleiro, Falperra, Jardim do Teatro, Pataqueira do Jardim, e os casinos Bragança, Chinês, Peninsular, Falcão, Pires, Madrid, Xabregas, Grande Hotel, Paraíso de Viseu, Boa Vista, e Central são outros exemplos de afamadas casas de jogo em Espinho. A importância das receitas que o jogo gerava e o furo do negócio era tal, que os pedidos de licenças para abertura de porta para jogo e até para instalação de barracas de jogo multiplicavam-se durante os meses de veraneio.




As Sardinhas Brandão, Gomes & C.ª


A sofisticação da lata de sardinha da antiga fábrica de conservas Brandão, Gomes, está exemplarmente referenciada num artigo transcrito no jornal "Gazeta de Espinho, de 16 de dezembro de 1913: "As caixinhas de alumínio belamente estampado são fechadas pelos mais adiantados processos mecânicos, sem a intervenção de solda de qualquer espécie. Envolve-as uma segunda caixa de cartão, delicadamente ornamentada e com dizeres a cores e relevo, cobertas por um invólucro de papel transparente apertado por uma fita de seda. Para não se deteriorar tão distinto invólucro, as caixas são, por último, encerradas numa cartonagem. Pode afirmar-se afoitamente que em parte alguma do mundo se apresentam conservas com a distinção com que os srs. Brandão, Gomes & C.ª acondicionam as sardinhas de Espinho, que podem ser oferecidas não só como apetitoso manjar, mas como delicado brinde."




A GÉNESE DO CINECLUBE DE ESPINHO

Tudo começou na antevéspera do Natal de 1955, quando um grupo de ativistas da Associação Académica de Espinho organizou uma sessão de cinema muito especial no Cineteatro S. Pedro para avaliar a possibilidade da criação de um cineclube em Espinho, isto numa época em que, um pouco por todo o mundo, o movimento cineclubista conquistava cada vez mais adeptos na defesa de um cinema de qualidade. Segundo uma notícia do jornal "Defesa de Espinho, de 1 de janeiro de 1956, nessa sessão foi projetado o filme "O Milagre de Milão”, do realizador italiano Vittorio de Sica, cuja exibição seria precedida pela leitura de notas explicativas da autoria de Luís Neves Real.
Menos de três meses volvidos, em março de 1956, já estava constituída uma Comissão Organizadora com a finalidade de criar um cineclube, que se instalou provisoriamente na sede da Associação Académica de Espinho, na rua 62. Nos mentores e fundadores do projeto encontramos nomes como António Gaio, Reinaldo Costa, Carlos Pinheiro de Morais ou Hernâni Barrosa, entre outras figuras espinhenses.
A primeira sessão teve lugar em 23 de maio de 1956, no Teatro S. Pedro, sessão histórica que assinalou o arranque de atividade do novo Cineclube de Espinho, numa altura em que já estavam inscritos mais de 200 sócios. No formato de película 16 mm foi exibido o filme "Um Carnet de Baile”, produção francesa de 1937 dirigida por Julian Duvivier com Pierre Blanchar no papel principal.